As Horas (1998), Michael Cunningham
Ficção - Clássicos
Tenho tido sorte com grande parte das minhas escolhas de leitura para 2020. Adiei por muito tempo a leitura deste livro, mas creio que o fiz no momento certo, como uma circunferência que se completa.
As Horas, romance premiado do escritor Michael Cunningham, publicado originalmente em 1998 merece lugar cimeiro na minha prateleira de favoritos como, aliás, já esperava. Terminei o livro há instantes e já lhe sinto a falta. Acredito que todos os livros são exercícios contínuos de empatia, seja o escritor que cria as personagens, seja o leitor que observa, omnipresente, o desenrolar da vida daqueles seres ficcionados. Nada melhor há do que um livro para nos ensinar, passo a passo, a colocarmo-nos na posição do outro, a compreender que, mesmo que não tenhamos partilhado as mesmas circunstâncias, mesmo que o nosso contexto seja em tudo distante daquele, conseguimos criar empatia com aquele ser ilusório, com aquele outro que nos guia pela mão e nos mostra outras perspetivas, outras formas de olhar o mundo, na sua insignificância, ambivalência e transcendência. Escrever um livro, mas ler um livro também, são derradeiros atos de empatia e de partilha. Isso é sublime. E o que Michael Cunningham fez com As Horas foi precisamente isso - um exercício perfeito de empatia.
Pessoal e intimamente, este livro tem um profundo significado para mim. Laura e Richard Brown deixaram uma marca indelével - a primeira, pela sua inquietante presença e semelhança; o segundo, pela insaciabilidade e esperança. Duas personagens que me ajudam a compreender pessoas reais, que contribuem para a expiação da culpa, para o perdão e para a empatia.
Para o título do seu romance, The Hours, Cunningham foi buscar inspiração àquele que teria sido o título inicial pensado por Virginia Woolf para a sua obra Mrs. Dalloway. Mas não é só no título que há relação - todo o romance de Cunningham está alicerçado em Mrs. Dalloway. Em As Horas, cujos capítulos se encontram divididos pelas três personagens principais, numa ação que ocorre num dia apenas (tal como Mrs. Dalloway), encontramos Virginia Woolf a criar e escrever Mrs. Dalloway; Laura Brown, uma mulher insatisfeita com a sua vida e que lê Mrs. Dalloway; e Clarissa Vaughan que vive a vida de Mrs. Dalloway na década de 90. É o livro de Woolf que entrecruza a existência destas três mulheres. Eu li Mrs. Dalloway de Virginia Woolf antes de ler As Horas, não digo que seja essencial, mas considerando que os alicerces se encontram naquela obra de Woolf, diria que ter conhecimento prévio de Clarissa Dalloway é uma mais valia.
Em As Horas a tragédia é latente, na vida de todos os personagens, contudo, verificamos como, ainda que maculados pela tragédia, com os seus monstros e melancolias, todos vivem, todos acordam - todos os dias - para mais um dia, mais horas, mais tempo, mais vida. É incrível como, envolto em tanta tristeza, este livro é, no final, um ato de plenitude e clarividência - uma ode à vida, à beleza, aos pequenos átomos quotidianos que constroem a nossa história e que a tornam preciosa porque a felicidade não se busca, ela simplesmente acontece.
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