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Queirosiana

Blogue sobre livros, leituras, escritores e opiniões

História da Menina Perdida (2016), Elena Ferrante

Ficção Histórica

29.07.20

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Aqui está uma história que se entranhou de tal forma em mim que vai demorar tempo até a Amiga Genial me sair da pele. Que história tão bem contada, que é tanto, tanto e tão, tão. Terminei este livro e mantive-o aberto um par de minutos num misto de sensações entre o abandono e a inquietude. 

Como leitoras e leitores, convidadas a acompanhar a vida de Lenú e Lila da infância à velhice, explorando os meandros mais profundos e intrincados da relação de amizade que une estas duas personagens, somos fascinadas pela forma como Ferrante nos envolve, torce e retorce e nos vicia e torna cativas, absorvidas pela ambivalência do ser humano. 

Neste último volume, que se inicia na década de 70 e avança até aos nossos dias, seguimos a vida das duas meninas, agora mulheres maduras, com especial foco na maternidade e na emancipação.  Mas não só, a violência que perpassa toda a história é aqui, devastadora. 

O poder emocional da narrativa de Ferrante é arrebatador. Com o seu estilo analítico, intimista e imersivo vai desvelando a ambiguidade da existência humana, numa busca compulsiva pela completude e coerência que se reflete nas suas duas personagens, Lila e Lenú. Gosto de as caracterizar como uma dualidade simbiótica indivisível. Pode parecer descabido, mas terminei o livro sem saber onde começava Lenú e terminava Lila - desconhecendo os contornos de uma e da outra.

Vou entrar num pântano reflexivo e algo confuso, mas quando digo que para mim Lila-Lenú são uma dualidade simbiótica indivisível, refiro-me obviamente ao facto de serem duas personagens independentes mas unidas por um forte laço de amizade, assente numa reciprocidade que é valida para o bem e para o mal. Na amizade, damos e recebemos,  entregamos (consciente ou inconscientemente) aos outros partículas de alma, fragmentamo-nos quando amamos e esses impercetíveis átomos de nós, deixam de nos pertencer e ficam ao cuidado dos outros. Somos nós neles - numa espécie de alquimia e transmutação. Não consigo separar Lenú de Lila, indivisíveis pela sua simbiose. 

Na serena posição de espectadores, assistimos ao longo dos quatro volumes, mas (talvez) sobretudo, neste último, de como as expectativas, incertezas e inseguranças são determinantes e os verdadeiros fios condutores da nossa vida, porque estão na base das cedências e intransigências que acumulamos ao longo do caminho da existência. Também aqui recordo a impressão nítida, no decurso da leitura, de como o poder das palavras não ditas, o silêncio calado das ações e omissões, são uma forma de consolidação da nossa relação connosco e com os outros. Ao mesmo tempo, e depois deste final, não consigo deixar de olhar para estes quatro volumes e encontrar neles uma beleza e humanidade imensa, na medida em que nos contam como, sucessivamente, o bem e a bondade regeneram sobre o mal e a maldade. 

Com a História da Menina Perdida, Ferrante encerra a tetralogia de a Amiga Genial, e fá-lo de forma brilhante. Recordando aqui uma citação que me atingiu e não escapou ainda,  I should write the way she speaks, leave abysses, construct bridges and not finish them, force the reader to establish the flow. Para mim (e de forma simplista), resume-se a isto, Ferrante construiu pontes, não as terminou, e deixou o leitor no abismo - o que é, simultaneamente, uma catarse e um desassossego.

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